17 janeiro 2013

In nomine Patris, et Filiis, et Spiritus Sancti.



Levava aquela vida há 35 anos, resolveu ser padre aos 18 depois de uma desilusão amorosa daquelas que fazem qualquer um perder o rumo. Cristina era o amor de sua vida, era linda, inteligente e agradável, ele acreditava que seriam felizes para sempre e fazia planos a curto, médio e longo prazo para os dois.
João era um rapaz de traços físicos não tão marcantes, mas sabia ser simpático e comunicativo como poucos, conheceu Cristinha ou Cris como ele costumava chamá-la em uma missa dominical em que estava servindo como coroinha, lá do altar ele notou aquela bela moça que prontamente o notou de forma recíproca.
Começaram a conversar antes do inicio da missa, ambos chegavam meia hora mais cedo para papear sobre qualquer coisa que rendesse uma boa conversa, depois ficavam dialogando após a celebração, e em pouco tempo se viam todos os dias e em menos de um mês estavam namorando.
Depois de oito meses de namoro e mergulhados em meio aos hormônios da juventude que os impulsionavam a amassos cada vez mais calorosos, Cristina decidiu que queria fazer sexo, no começo ele adorou a idéia, mas quando os ensinamentos religiosos que recebeu por toda a sua vida se sobrepuseram ao seu desejo, ele resolveu que deveriam esperar o casamento, pois aquilo era um pecado terrível, punível com o fogo eterno.
Cristina tentou dialogar dizendo que poderiam se casar depois e que não haveria problema, mas João insistia que aquilo não era correto e que não adiantava burlar as leis divinas. Até que um dia enquanto se pegavam no carro, ela se estressou com aquela postura de seu namorado e resolveu romper com ele de uma vez por todas.
Ele ficou muito mal com tudo aquilo, estava dividido entre a lascívia e o castigo divino que seria sua conseqüência, durante as missas sentia o seu coração dilacerando quando olhava para Cristina. Até que resolveu se aconselhar com Padre Euclides, que era muito seu amigo, e então se decidiu por levar uma vida religiosa longe de Cristina e de tudo o que a lembrava, foi embora em segredo e só algum tempo depois as pessoas perceberam que ele havia sumido das missas e reuniões religiosas da comunidade Nossa Senhora da Paz.
No começo foi difícil e ele passava horas rezando de joelhos e lendo a Bíblia Sagrada, com o intuito incessante de esquecer aquela mulher que o havia marcado a ferro e fogo, com o seu jeito encantador e o seu perfume que conseguia sentir ao fechar os olhos e lembrar-se dela como se estivesse ali ao seu lado.
Mas em meio aos estudos encontrou uma espécie de balsamo para a sua paixão, e eis que outro problema surgiu depois daquele, e agora exatamente 35 anos depois ele sofria com esse novo problema.
João conhecia a Bíblia profundamente, não sabia quantas vezes a havia lido, mas sua crise mesmo começou quando iniciou os estudos sobre História Geral, Filosofia, Ciências Naturais, Exatas além de Teologia e outras matérias durante o tempo que se preparava para ser Padre.
Mas aquela introdução foi apenas um mal estar passageiro comparado com o que estava por vir, que só se manifestou plenamente depois de muitos anos de vida sacerdotal.
Mesmo depois de ordenado, não havia parado com os estudos, o conhecimento havia se tornado a paixão de sua vida. O primeiro embate em que se viu compelido a analisar foi à questão do evolucionismo de Charles Darwin e o criacionismo da Bíblia, no começo ele tentava de todas as formas justificar o que estava no ‘livro sagrado’, dizendo que Deus podia tudo e que aquilo era algo absolutamente plausível pois O Criador era onipotente, mas quanto mais ele comparava as teorias mais se via compelido a dar primazia ao evolucionismo.
Seus estudos continuavam de forma ininterrupta, e quanto mais estudava mais se sentia angustiado com o rumo que sua razão o levava a crer. Estudou as outras religiões em segredo, leu o livro de São Cipriano da Capa Preta, grandes filósofos como Rousseau, Montesquieu, Sartre, Kant, Nietzsche e muitos outros, chegou ao ponto de ler o Alcorão, em busca de uma verdade que alimentasse de uma vez por todas a sua racionalidade pulsante. Passou anos e anos de sua vida passeando entre todas as áreas do conhecimento ao seu alcance, enquanto seguia com a sua vida de padre em uma comunidade semelhante a que costumava freqüentar em sua juventude.
E quanto mais lia, mais agoniado ficava por não ter com quem compartilhar as suas crenças pessoais, que haviam se tornado tão distantes do que pregava em suas missas. João não acreditava mais na Bíblia, e mesmo assim tinha que lê-la em todas as celebrações e doutrinar os seus fiéis de acordo com o que estava nela.
Havia estudado a história da Igreja Católica Apostólica Romana e no seu intimo a abominava por todo o mal que ela havia praticado na Idade Média, nas Cruzadas e através do Tribunal da Santa Inquisição. As coisas foram acontecendo de forma gradativa ao ponto de não mais acreditar em Santos, na Santíssima Trindade, em Jesus como Salvador do Mundo e por um último em Deus, mas mesmo assim tinha que se ajoelhar perante aquelas imagens e conduzir os rituais religiosos em conformidade a tudo àquilo que abominava, mas reprimia.
Ele mesmo se considerava uma abominação, pois havia se tornado um Padre ateu, e aquilo o torturava de forma profunda. Ele podia muito bem abrir mão de tudo aquilo e seguir uma vida fora da Igreja como uma pessoa comum, mas como dizia Oscar Niemeyer ‘estava velho demais para mudar’, embora já estivesse completamente mudado.
João tinha 53 anos, possuía um conhecimento semelhante ou até maior ao de um Mestre, havia dedicado a sua vida inteira aquela vida, seus pais estavam mortos, seus irmãos casados e com netos, e o mercado de trabalho não era receptivo a pessoas com a sua idade e falta de experiência.
Toda noite sentia o coração pesado ao olhar para trás e se arrependia profundamente por não ter ficado com Cristina, ter levado uma vida comum, ter tido alguns filhos e agora estar curtindo os netos em sua velhice. Mas não tinha mais para onde ir, não havia outro caminho a seguir a não ser o da morte que talvez demorasse anos, ele queria muito saber o que vinha depois, qual era o sentido desse mundo e da vida. Não se conformava em simplesmente acreditar por acreditar, pois queria e necessitava em saber o porquê das coisas.
Pensou e relembrou boa parte dessas coisas enquanto estava sentando ao lado do Arcebispo que estava visitando sua igreja naquele domingo de manhã, que o chamou dizendo:
-Então Comunidade de Santo Agostinho, convido o já conhecido e querido de vocês Padre João para encerrar essa Santa Missa.
João se levantou, rezou um pai nosso, deu alguns avisos, agradeceu a presença do Arcebispo, elogiou o seu trabalho e abençoou os fieis dizendo:
-Vão em paz e que o senhor os acompanhe!
-Amém!
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 Anos depois em seu leito de morte João confessou tudo isso ao padre que foi dar-lhe a Extrema-Unção, que ficou chocado com tudo o que ouviu, então ele disse:
-Você se arrepende de todos os pecados que me contou?
-Não! Arrependo-me de ter escolhido levar essa vida.
-Não posso perdoá-lo se não estiver arrependido dos pecados que cometeu. Escolher ser padre não é um pecado, ser ateu sim.
-Não quero o seu perdão meu caro, pois com todo o respeito não acredito em nada disso, só estou contando para alguém tudo o que guardei comigo todos esses anos e te agradeço de coração por ter me ouvido. E se você algum dia quiser contar isso para qualquer pessoa, sinta-se livre para isso.
-Que Deus tenha misericórdia de sua alma irmão.
E depois de ouvir isso ele deu um último sorriso com os lábios, respirou profundamente e foi fechando os olhos lentamente enquanto sentia o seu coração parar.
-Ego tibi ignosco in nomine Patris, et Filii, et Spitus Sancti! Requiescat in pace! Amen.¹
Juan Ricthelly. Gama-DF, Janeiro de 2013.

1(latim): “Eu te perdôo em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo! Descanse em paz! Amém!”

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