Levava aquela
vida há 35 anos, resolveu ser padre aos 18 depois de uma desilusão amorosa
daquelas que fazem qualquer um perder o rumo. Cristina era o amor de sua vida,
era linda, inteligente e agradável, ele acreditava que seriam felizes para
sempre e fazia planos a curto, médio e longo prazo para os dois.
João era um
rapaz de traços físicos não tão marcantes, mas sabia ser simpático e
comunicativo como poucos, conheceu Cristinha ou Cris como ele costumava chamá-la
em uma missa dominical em que estava servindo como coroinha, lá do altar ele notou
aquela bela moça que prontamente o notou de forma recíproca.
Começaram a
conversar antes do inicio da missa, ambos chegavam meia hora mais cedo para
papear sobre qualquer coisa que rendesse uma boa conversa, depois ficavam
dialogando após a celebração, e em pouco tempo se viam todos os dias e em menos
de um mês estavam namorando.
Depois de oito
meses de namoro e mergulhados em meio aos hormônios da juventude que os
impulsionavam a amassos cada vez mais calorosos, Cristina decidiu que queria
fazer sexo, no começo ele adorou a idéia, mas quando os ensinamentos religiosos
que recebeu por toda a sua vida se sobrepuseram ao seu desejo, ele resolveu que
deveriam esperar o casamento, pois aquilo era um pecado terrível, punível com o
fogo eterno.
Cristina
tentou dialogar dizendo que poderiam se casar depois e que não haveria
problema, mas João insistia que aquilo não era correto e que não adiantava
burlar as leis divinas. Até que um dia enquanto se pegavam no carro, ela se
estressou com aquela postura de seu namorado e resolveu romper com ele de uma
vez por todas.
Ele ficou
muito mal com tudo aquilo, estava dividido entre a lascívia e o castigo divino
que seria sua conseqüência, durante as missas sentia o seu coração dilacerando
quando olhava para Cristina. Até que resolveu se aconselhar com Padre Euclides,
que era muito seu amigo, e então se decidiu por levar uma vida religiosa longe
de Cristina e de tudo o que a lembrava, foi embora em segredo e só algum tempo
depois as pessoas perceberam que ele havia sumido das missas e reuniões
religiosas da comunidade Nossa Senhora da Paz.
No começo foi
difícil e ele passava horas rezando de joelhos e lendo a Bíblia Sagrada, com o
intuito incessante de esquecer aquela mulher que o havia marcado a ferro e fogo,
com o seu jeito encantador e o seu perfume que conseguia sentir ao fechar os
olhos e lembrar-se dela como se estivesse ali ao seu lado.
Mas em meio
aos estudos encontrou uma espécie de balsamo para a sua paixão, e eis que outro
problema surgiu depois daquele, e agora exatamente 35 anos depois ele sofria com
esse novo problema.
João conhecia
a Bíblia profundamente, não sabia quantas vezes a havia lido, mas sua crise mesmo
começou quando iniciou os estudos sobre História Geral, Filosofia, Ciências
Naturais, Exatas além de Teologia e outras matérias durante o tempo que se
preparava para ser Padre.
Mas aquela
introdução foi apenas um mal estar passageiro comparado com o que estava por
vir, que só se manifestou plenamente depois de muitos anos de vida sacerdotal.
Mesmo depois
de ordenado, não havia parado com os estudos, o conhecimento havia se tornado a
paixão de sua vida. O primeiro embate em que se viu compelido a analisar foi à
questão do evolucionismo de Charles Darwin e o criacionismo da Bíblia, no
começo ele tentava de todas as formas justificar o que estava no ‘livro sagrado’,
dizendo que Deus podia tudo e que aquilo era algo absolutamente plausível pois
O Criador era onipotente, mas quanto mais ele comparava as teorias mais se via
compelido a dar primazia ao evolucionismo.
Seus estudos
continuavam de forma ininterrupta, e quanto mais estudava mais se sentia
angustiado com o rumo que sua razão o levava a crer. Estudou as outras religiões
em segredo, leu o livro de São Cipriano da Capa Preta, grandes filósofos como
Rousseau, Montesquieu, Sartre, Kant, Nietzsche e muitos outros, chegou ao ponto
de ler o Alcorão, em busca de uma verdade que alimentasse de uma vez por todas
a sua racionalidade pulsante. Passou anos e anos de sua vida passeando entre
todas as áreas do conhecimento ao seu alcance, enquanto seguia com a sua vida
de padre em uma comunidade semelhante a que costumava freqüentar em sua
juventude.
E quanto mais
lia, mais agoniado ficava por não ter com quem compartilhar as suas crenças
pessoais, que haviam se tornado tão distantes do que pregava em suas missas. João
não acreditava mais na Bíblia, e mesmo assim tinha que lê-la em todas as
celebrações e doutrinar os seus fiéis de acordo com o que estava nela.
Havia estudado
a história da Igreja Católica Apostólica Romana e no seu intimo a abominava por
todo o mal que ela havia praticado na Idade Média, nas Cruzadas e através do
Tribunal da Santa Inquisição. As coisas foram acontecendo de forma gradativa ao
ponto de não mais acreditar em Santos, na Santíssima Trindade, em Jesus como
Salvador do Mundo e por um último em Deus, mas mesmo assim tinha que se
ajoelhar perante aquelas imagens e conduzir os rituais religiosos em
conformidade a tudo àquilo que abominava, mas reprimia.
Ele mesmo se
considerava uma abominação, pois havia se tornado um Padre ateu, e aquilo o
torturava de forma profunda. Ele podia muito bem abrir mão de tudo aquilo e
seguir uma vida fora da Igreja como uma pessoa comum, mas como dizia Oscar
Niemeyer ‘estava velho demais para mudar’, embora já estivesse completamente
mudado.
João tinha 53
anos, possuía um conhecimento semelhante ou até maior ao de um Mestre, havia dedicado a sua vida inteira aquela
vida, seus pais estavam mortos, seus irmãos casados e com netos, e o mercado de
trabalho não era receptivo a pessoas com a sua idade e falta de experiência.
Toda noite
sentia o coração pesado ao olhar para trás e se arrependia profundamente por não
ter ficado com Cristina, ter levado uma vida comum, ter tido alguns filhos e
agora estar curtindo os netos em sua velhice. Mas não tinha mais para onde ir,
não havia outro caminho a seguir a não ser o da morte que talvez demorasse anos,
ele queria muito saber o que vinha depois, qual era o sentido desse mundo e da
vida. Não se conformava em simplesmente acreditar por acreditar, pois queria e
necessitava em saber o porquê das coisas.
Pensou e
relembrou boa parte dessas coisas enquanto estava sentando ao lado do Arcebispo
que estava visitando sua igreja naquele domingo de manhã, que o chamou dizendo:
-Então Comunidade de Santo Agostinho,
convido o já conhecido e querido de vocês Padre João para encerrar essa Santa
Missa.
João se
levantou, rezou um pai nosso, deu alguns avisos, agradeceu a presença do
Arcebispo, elogiou o seu trabalho e abençoou os fieis dizendo:
-Vão em paz e que o senhor os acompanhe!
-Amém!
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
Anos depois em seu leito de morte João
confessou tudo isso ao padre que foi dar-lhe a Extrema-Unção, que ficou chocado
com tudo o que ouviu, então ele disse:
-Você se arrepende de todos os pecados que
me contou?
-Não! Arrependo-me de ter escolhido levar
essa vida.
-Não posso perdoá-lo se não estiver
arrependido dos pecados que cometeu. Escolher ser padre não é um pecado, ser
ateu sim.
-Não quero o seu perdão meu caro, pois com
todo o respeito não acredito em nada disso, só estou contando para alguém tudo
o que guardei comigo todos esses anos e te agradeço de coração por ter me
ouvido. E se você algum dia quiser contar isso para qualquer pessoa, sinta-se
livre para isso.
-Que Deus tenha misericórdia de sua alma irmão.
E depois de
ouvir isso ele deu um último sorriso com os lábios, respirou profundamente e
foi fechando os olhos lentamente enquanto sentia o seu coração parar.
-Ego tibi ignosco in nomine Patris, et Filii, et Spitus Sancti! Requiescat
in pace! Amen.¹
Juan
Ricthelly. Gama-DF, Janeiro de 2013.
1(latim): “Eu
te perdôo em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo! Descanse em paz! Amém!”
Nenhum comentário:
Postar um comentário